O presente texto tem como objetivo primordial o registro do anacronismo da legislação eleitoral com relação à Defensoria Pública. Com efeito, a instituição, nas últimas décadas e com o melhor delineamento de suas funções, passou a figurar em seção própria da Constituição Federal, enquanto expressão e instrumento do regime democrático, voltada à promoção de direitos humanos e à defesa dos direitos, individuais e coletivos, dos necessitados.
Essa personalidade multifacetada da Defensoria Pública é bem visualizada a partir do amplo rol de funções institucionais expressamente mencionadas na legislação infraconstitucional, em especial na Lei Complementar 80 e, nesta, em seu artigo 4º.
No campo processual, isso tem como consequência a atuação institucional em diversas posições, que podem ser aglutinadas para fins explicativos, de forma geral, em três: (1) Representação, quando atua em nome alheio, em defesa de direito alheio. É o caso de representar um eleitor ou candidato necessitado que ocupa o polo passivo ou ativo de uma ação eleitoral. (2) Substituição, quando atua em nome próprio em defesa de direito alheio. Nesta hipótese, a Defensoria age em seu próprio nome, sendo, ela mesma, parte, embora defenda interesses que não são seus. É o que ocorre quando ajuíza uma ação civil pública. (3) Interveniente. Não sendo parte, nem representante de uma das partes, ingressa nos autos como terceiro interessado, a fim de desempenhar suas funções institucionais. São exemplos a atuação como amicus curiea e a intervenção custos vulnerabilis, ambas já sedimentadas pela doutrina e reconhecidas pelos tribunais.
As ações eleitorais, por sua vez, podem ser divididas em dois grandes grupos: aquelas que seguem o rito do artigo 22 da LC no 64/1990 e as que não seguem este procedimento. Entre as primeiras estão a Ação de Investigação Judicial Eleitoral por Abuso de Poder, a Ação por Captação ou Gasto Ilícito de Recursos, a Ação por Captação Ilícita de Sufrágio e a Ação por Conduta Vedada.
Acerca da legitimidade para mover tais ações, o referido artigo 22 dispõe que qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral. Não há menção à Defensoria Pública, como se observa, embora sejam inúmeras as hipóteses em que os fatos podem impactar ainda mais severamente na esfera de direitos e interesses de pessoas e grupos necessitados.
Basta imaginar uma ação por captação ilícita de sufrágio, nas quais eventual compra de votos ou coação para votar em determinado candidato tem como alvo pessoas em evidente vulnerabilidade social.
No tocante a Ação por Captação ou Gasto Ilícito de Recursos para Fins Eleitorais, embora o caput do artigo 30-A – Lei 9.504/97 — faça alusão somente ao “partido político ou coligação”, tem-se realizado interpretação extensiva no sentido de que o polo ativo da relação processual também pode ser ocupado pela federação de partido, candidato e pelo Ministério Público, à luz do artigo 22.
Sem prejuízo de uma maior reflexão sobre a legitimidade da Defensoria Pública para as ações eleitorais a partir de uma leitura sistemática e com base na unidade da legislação, à luz da constituição e do artigo 14 da Lei Complementar 80 — dispõe que a Defensoria Pública da União atuará junto à Justiça Eleitoral — é certo que o anacronismo legislativo se resolve com a alteração do artigo 22 da LC no 64/1990, para inserir a Defensoria Pública ao lado do partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral.
Com efeito, a legislação eleitoral ainda enxerga a Defensoria como uma instituição que atua exclusivamente na representação da parte necessitada, mormente quando figura no polo passivo de alguma ação eleitoral, no mais das vezes envolvendo a acusação de algum crime eleitoral. É necessário, portanto, atualizar a lei para deixar expresso que a instituição pode ocupar outras posições processuais eleitorais.
No que diz respeito à legitimidade para ajuizar as ações, a questão ganha ainda maior relevo diante do artigo 105-A da Lei 9.504/1997, no qual se dispõe que em matéria eleitoral não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública). Demais disso, a atuação da Defensoria Pública é forma de ampliar a participação de grupos em desvantagem social no processo eleitoral, ao cabo, democratizar o processo.
Pensamos que com relação à intervenção custos vulnerabilis, embora seja relevante sua expressa previsão legal na lei eleitoral, isto não é condição indispensável, já que referida atuação decorre da própria constituição federal — artigo 134 — e verifica-se, no caso concreto, a partir da possibilidade anômala de intervir em processos nos quais exista interesse institucional, seja através de requerimento do membro, de uma das partes ou por notificação de ofício do juiz ou tribunal eleitoral.
No que diz respeito às ações que não seguem o procedimento do artigo 22 da LC no 64/1990, verifica-se, por generalidade, a mesma lógica da legislação eleitoral no sentido de encarar a atuação do defensor público como restrita à representação processual. Incluem-se aqui a Ação de Impugnação ao Registro de Candidatura, a Ação de Impugnação ao Mandato Eletivo, o Recurso Contra a Diplomação e a Ação Rescisória Eleitoral.
Essa visão enviesada da instituição causa um prejuízo social que é potencializado pela ausência de estruturação adequada, em especial por falta de investimentos públicos. Embora a regra constitucional — artigo 98, §1º, ADCT — tenha fixado que até o ano de 2022 a União, os estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, é certo que essa realidade se encontra muito distante de ser atingida, de maneira que boa parte da população não tem acesso, individualmente, a um defensor público que possa fazer sua representação. É evidente que, embora não resolva a questão, a molecularização de demandas, com alcance coletivo (o que é viabilizado pela substituição processual), tem o condão de ampliar a âmbito de abrangência da assistência jurídica pública.
Por fim, através de rápida pesquisa — auxiliada pelos recursos tecnológicos — pode-se constatar que a atual redação do Código Eleitoral — Lei 4.737/1965 — não faz nenhuma menção à Defensoria Pública. Eventual alteração legislativa aqui se mostra necessária, seguindo o caminho já traçado pela Constituição Federal, ou seja, criando-se seção específica para tratar da Defensoria Pública Eleitoral. Neste sentido, registra-se a tramitação de Projetos de Lei no Senado Federal PL 112/2021 e PL 608/2022 – que pretendem alterar a norma eleitoral, caminhando neste rumo. Embora não caiba aqui, por limite espacial, análise mais detalhada do texto proposto, registra-se que tais alterações, por imposição lógica e sistemática, devem observar o perfil traçado constitucionalmente para a instituição, além da divisão de atribuições entre seus ramos, estabelecida na Lei Complementar 80/1994, inclusive por se tratar de norma que versa sobre o seu regime jurídico.
Edilson Santana Gonçalves Filho é mestre em Direito e especialista em Direito Processual, defensor público federal, pesquisador do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo (FPCC), ligado ao Laprocon (Laboratório de Processo e Constituição) e à Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo (ProcNet) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).