No Brasil, a instituição pública, permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, com a missão constitucional de prestar a assistência jurídica integral e gratuita àqueles desprovidos de recursos (artigo 5º, LXXIV, da Constituição) é a Defensoria Pública, tal como prescreve o artigo 134 da Constituição.
Nos últimos 20 anos assistimos um processo de mudança institucional da Defensoria Pública, com a ampliação da missão constitucional e, também, criação de instrumentos que permitam ampliar o acesso à Justiça da população vulnerabilizada. Nesse sentido, o Poder Constituinte Derivado incrementou, a nível constitucional, o “instrumental já existente e conferindo a tríplice autonomia (administrativa, orçamentária e técnica) necessária para minorar práticas orçamentárias de retrocesso quanto aos direitos fundamentais” [1].
Comparativamente, e sob um viés quantitativo de reformas constitucionais, a Defensoria Pública é, dentre as instituições públicas essenciais à função jurisdicional do Estado democrático brasileiro, inegavelmente a que mais experimentou redefinição e reafirmação pelo constituinte derivado. Foram quatro reformas constitucionais, concedendo conformação diversa àquela instituição originalmente constante do texto de 1988.
Relativamente ao segmento federal da instituição responsável pela assistência jurídica, duas emendas constitucionais merecem destaque. A EC n° 74/2013, foi a que conferiu à Defensoria Pública da União a mesma autonomia já reconhecida às Defensorias estaduais por meio da reformulação ocorrida em 2004.
E a mais recente, a EC n° 80/2014, que erigiu às Defensorias o status de permanente e essenciais, como expressão e instrumento do regime democrático, com a promoção dos direitos humanos de forma individual ou coletivamente. Essa última emenda, inclusive, acresceu ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, consoante artigo 98, a obrigação de União, estados e Distrito Federal viabilizarem o atendimento de Defensores Públicos em todas as unidades jurisdicionais no prazo de oito anos.
Infelizmente, porém, não foi no ano de 2022 que se concretizou a promessa estabelecida pelo constituinte derivado por meio da EC n° 80/2014. É público e notório, ou seja, de conhecimento geral, que as Defensorias Públicas não lograram acessar todos os rincões do nosso vasto país. Por consequência, o público-alvo dessa instituição, em 2024 estimado em 178.700.133 habitantes [2], não é integralmente atendido.
Elucidativos são, no tema, os levantamentos apurados pela Pesquisa Nacional da Defensoria Pública. O último panorama, 2024, apresenta duas métricas geográficas importantes: cobertura defensorial nos estados e Distrito Federal, e na União. Em relação às Defensorias estaduais,
“Atualmente, o território brasileiro possui 2.565 comarcas regularmente instaladas. Diante do insuficiente quantitativo de Defensores(as) Públicos(as), apenas 1.315 comarcas são regularmente atendidas pela Defensoria Pública, representando 51,3% do quantitativo total” [3].
Realidade mais periclitante, lamentavelmente, é enfrentada no âmbito da União, pois atualmente a Justiça Federal conta com 279 subseções judiciárias, contudo
“Em virtude do insuficiente quantitativo de Defensores(as) Públicos(as) Federais, apenas 78 subseções judiciárias federais são regularmente atendidas pela Defensoria Pública da União, representando 28,2% do quantitativo total. Outrossim, por conta do programa de interiorização recentemente implementado pela DPU, outras 33 subseções judiciárias federais passaram a ser atendidas em caráter parcial ou excepcional pela Defensoria Pública da União, representado 12,0% do quantitativo total. Não obstante o esforço da DPU para garantir o acesso à justiça para todos, atualmente 165 subseções judiciárias federais não são atendidas pela Defensoria Pública da União, representando 59,8% do total” [4].
Ainda sob o panorama federal, conclui a Pesquisa Nacional que,
“atualmente 69.327.777 habitantes não possuem acesso aos serviços jurídico-assistenciais oferecidos pela Defensoria Pública da União, em violação ao art. 134 da CRFB e à diretriz do art. 98 do ADCT. Dentro do quantitativo indicado, 62.229.357 são habitantes economicamente vulneráveis com renda de até três salários mínimos, que potencialmente não possuem condições de realizar a contratação de advogado particular para promover a defesa de seus direitos. Desse modo, cerca de 34,1% da população brasileira se encontra potencialmente à margem do sistema de justiça federal e impedida de reivindicar seus próprios direitos por intermédio da Defensoria Pública da União” [5].
Pois então, a realidade que se experimenta em 2025 vai de encontro com a diretriz constitucional estabelecida pela EC n° 80/2014. Há nove anos se fixou a obrigação da União, dos Estados e do Distrito Federal dotarem todas as unidades jurisdicionais de defensores públicos, estes em número proporcional à efetiva demanda do serviço da Defensoria e à respectiva população. Evidentemente, consubstanciado nos indicadores descritos linhas acima, o comando constitucional não foi observado.
E disso, há alguma consequência?
Na compreensão destes articulistas, a consequência é o fenômeno, denominado por Júlia L. Travessa [6] (2022), “vazio defensorial”, que se origina em virtude do subfinanciamento orçamentário da instituição. Um exemplo desse quadro é a assimetria do número de defensores, comparativamente aos quantitativos de membros do Ministério Público [7] e do Judiciário [8]. Vazio este que implica no reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no âmbito da assistência jurídica integral e gratuita.
O denominado estado de coisas inconstitucional, teoria surgida na América Latina pela Corte Constitucional da Colômbia, pressupõe para sua configuração três elementos, 1) situação de violação generalizada de direitos fundamentais; 2) omissão reiterada e persistente das autoridades públicas em modificarem aquele contexto de violação, ou seja, uma verdadeira falha estatal estrutural; e, por fim, 3) a necessidade de atuação de diversas entidades e autoridades para solucionar a situação inconstitucional [9]. Nesse sentido, transcrevemos a lição da Defensora Pública Raquel El-Bachá Figueiredo:
“Considerando-se que ausência de defensores públicos e a disparidade entre a sua quantidade o número de magistrados e membros do Ministério público no território nacional configuram um quadro que possui os pressupostos necessários para o conhecimento do estado de coisas inconstitucional anteriormente mencionados, bem como o enquadramento dos direitos de acesso à justiça e de assistência jurídica gratuita com direitos multidimensionais, tal situação pode ser identificada um estado de coisas inconstitucional” [10].
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional já se encontra referendado em alguns casos [11]. Desses o mais emblemático é o da falha estatal estrutural no sistema carcerário brasileiro [12], Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Na referida ADPF, segundo o ministro Marco Aurélio, dentre todos os demais elementos ressaltados para reconhecimento do estado de desconformidade inconstitucional, a falta de implementação do comando constante no artigo 98, §1°, do ADCT constou como um dos motivos causadores dessa inconstitucionalidade.
Noutro giro, cumpre observar que o STF já consignou que as garantias institucionais da Defensoria “são instrumentos para concretização dos direitos e liberdades das pessoas em situação de vulnerabilidade” [13]. Como esclarecem o ministro Gilmar Mendes e o procurador-geral da República Paulo Gonet Branco [14],
“As garantias institucionais resultam da percepção de que determinadas instituições (direito público) ou institutos (direito privado) desempenham papel de tão elevada importância na ordem jurídica que devem ter o seu núcleo essencial (as suas características elementares) preservado da ação erosiva do legislador.”
Isso tudo significa que a Constituição, sob o manto da garantia institucional, conferiu proteção especial à Defensoria Pública, até porque, sem o acesso à justiça, todo o sistema de direitos – em particular dos vulneráveis — sucumbe de efetividade. Deparando-se, por conseguinte, com a fotografia de (des)assistência jurídica integral e gratuita de boa parte da população brasileira.
Assim é nítido que as limitações orçamentárias impingidas, inicialmente, pela EC 95/2016, num segundo momento, pela EC 126/2022 e, atualmente, pela Lei Complementar n° 200/2023 são contrárias ao programa estabelecido no artigo 98, §1°, do ADCT, a merecer, portanto, a declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade mediante a técnica da interpretação conforme.
Acerca do subfinanciamento da Defensoria, Júlia L. Travessa [15] anota
“A análise comparativa entre a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Poder Judiciário revela o desequilíbrio entre o quadro financeiro das instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro. Para o orçamento de 2021, os valores destinados à Defensoria Pública serão 313,0% menores que o orçamento do Ministério Público e 1.575,4% menores que o orçamento do Poder Judiciário. A problemática do subfinanciamento das Defensorias Públicas reside na sua qualidade de realização material da dignidade cidadã, seja via acesso a orientações jurídicas, a educação em direitos e a soluções afinadas com a realização da “justiça” para além do acesso ao Judiciário, seja via busca da proteção da tutela jurisdicional. Ora, apenas comparando com os Ministérios Públicos, que não são expressão material de nenhum direito fundamental expresso (apenas por via reflexa), existe 300% mais orçamento e 41% mais órgãos de execução. Em seguida, quando se faz a análise tomando como base o Poder Judiciário, que efetivamente realiza materialmente direito fundamental expresso no art. 5º da CF/1988 (proteção jurisdicional), verifica-se 1.500% mais disponibilidade financeira e 66% mais membros. Conclui-se, assim, à luz do que já fora decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, que há verdadeiro estado de coisas inconstitucional orçamentário nas Defensorias Públicas no Brasil.”
O subfinanciamento das Defensorias não é fato novo no âmbito institucional da DPU, inclusive com a provocação do STF para reparar algumas destas situações, consoante se destaca dos autos da ADI 5296 e ADPF 313. Esse tema, contudo, não deixa de constar como primeiro item da agenda da Defensoria Pública da União. Isso, como já explicado, porquanto da limitação orçamentária decorrente das regras estabelecidas no arcabouço fiscal, implementado em 2023, à semelhança ao que acontece com o Poder Judiciário e Ministério Público da União.
Portanto, esse é apenas mais um capítulo do longo histórico de contenção financeira impingida à assistência jurídica integral e gratuita, cada um à sua medida e atribuição constitucional, pelos Poderes Executivo e Legislativo Federais.
Obtemperando os três elementos necessários à configuração do estado de coisas inconstitucional, em particular no âmbito do subfinanciamento da política estatal de assistência jurídica integral e gratuita, pode-se confirmar a sua ocorrência, veja-se,
1) A massiva violação dos direitos fundamentais ou, nos dizeres do Ministro Edson Fachin, dos direitos humanos, se manifesta pelo fato de apenas 50,2% das comarcas contarem com os serviços prestados pelas Defensorias Estaduais, enquanto no âmbito Federal esse percentual não atinge 40% das subseções judiciárias federais. Tratando-se, pois, o acesso à justiça como o direito fundamental mais elementar, a falha estatal em colmatar essa omissão, fato prevalente não apenas desde 2014, mas sim desde 1988, quando do surgimento das Defensorias no comando constitucional, é indicador da reiterada e persistente falha estatal.
2) A omissão em superar a falha estatal estrutural é facilmente atribuída a mais de um ente estatal e autoridade pública. É nítido que se houvesse uma atuação concatenada e efetiva dos Poderes da República, a realidade orçamentária experimentada na Defensoria seria outra. Não se diz que há desinteresse político em prover nacionalmente o órgão de assistência jurídica em prol da população carente, mas certamente os esforços não o foram, até o instante, suficientes a alterar o quadro de violação.
3) A necessidade de atuação complexa dos três Poderes decorre justamente pelo fato de, individualmente, cada ente estatal não ter conseguido alterar o estado de coisas inconstitucional experimentado pelas Defensorias.
Por tudo isso, não podemos mais aceitar, que em 2025, acima de 34% da população nacional esteja alijada do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita no âmbito federal. Ecoa infelizmente atual, a reflexão de Mauro Cappelletti e Bryant Garth apuradas no Projeto Florença, segundo a qual somente haverá Justiça Social com o efetivo acesso à Justiça [16]. Assim, poderíamos dizer que, na estrutura constitucional brasileira, somente haverá acesso Justiça efetivo e Justiça Social com Defensoria Pública forte e disponível a todos e em todos os lugares.
Notas e referências:
[1] TRAVESSA, Júlia Lordêlo. Vazio Defensorial: patologia fruto do estado de coisas inconstitucional orçamentário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-22/tribuna-defensoria-vazio-defensorial-estado-coisas-inconstitucional-orcamentario/ Acesso em: 1 mai. 2024.
[2] ESTEVES, Diogo et al. Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2024. Brasília: DPU, 2024. P. 37
[3] Ibid., p. 33
[4] Ibid., p.42
[5] Ibid., pp.46-47
[6] TRAVESSA, Júlia Lordêlo. Op. cit.
[7] Em análise comparativa entre o número de membros, no Ministério Público, em 2023, eram 12.876 membros. ESTEVES, Op. cit., p. 4.
[8] No âmbito deste Poder, o total de membros, em 2023, correspondia a 17.919. ESTEVES, Op. cit., p. 4.
[9] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural/ Acesso em: 17 abr. 2024.
[10] FIGUEIREDO, Raquel El-Bachá. Estado de coisas inconstitucional e Defensoria Pública: do subfinanciamento orçamentário à violação do inciso LXXIV, do art. 5º e art. 134 da Constituição. In: MAIA, Maurilio Casas. Defensoria Pública, constituição e ciência política. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 414.
[11] ADPF 347-MC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJe de 19/2/2016; ADPF 709-MC-Ref, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, DJe de 7/10/2020; ADPF 756-TPI-Ref, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, DJe de 30/3/2021; ADPF 635-MC, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 2/6/2022.
[12] ADPF 347-MC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJe de 19/2/2016; ADPF 709-MC-Ref, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, DJe de 7/10/2020
[13] ADI 6866, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 09.05.2022, p. 8.
[14] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 18 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 136/137.
[15] TRAVESSA, Júlia Lordêlo. Op. cit.
[16] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Brian. Acesso à Justiça. Tradução e revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988. p. 8.
Alexandro Melo Corrêa
é defensor público federal e mestrando da Universidade Federal de Pelotas na área de Direitos Sociais e linha de pesquisa Estado, Justiça e Direito Sociais.
Junior Leite Amaral
é defensor público federal e mestrando da Universidade Federal de Pelotas na área de Direitos Sociais e linha de pesquisa Estado, Justiça e Direito Sociais.