Nos cinco estados brasileiros em que os gastos do poder público com advogados dativos são divulgados, esse dinheiro seria suficiente para, no mínimo, colocar defensores públicos em todas as comarcas que hoje não contam com esse serviço. Essa conclusão é de uma pesquisa feita no último ano pela Defensoria Pública da União e por entidades ligadas às Defensorias. Ainda conforme o estudo, isso também seria possível nas demais unidades federativas que utilizam a advocacia dativa, mas não divulgam os gastos.
A amostra do cálculo é pequena. O gasto exato com advocacia dativa só é sabido em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rondônia. Além disso, as Defensorias destes dois últimos estados já têm cobertura territorial completa, mas ainda apresentaram gastos (menores) com dativos para cobertura de situações excepcionais. Porém, mesmo nesses casos, o dinheiro gasto com os advogados poderia ser usado para ampliar o número de defensores.
Quanto aos demais estados que ainda usam advogados dativos, mas não divulgam informações sobre os valores efetivamente gastos, a pesquisa diz: “A economicidade trazida pelo modelo de Defensoria Pública permite inferir que a reversão do orçamento da advocacia dativa para a contratação de defensores públicos também geraria o mesmo efeito prático apresentado pelas projeções realizadas nos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina”.
A implementação dos serviços da Defensoria Pública em todas as unidades jurisdicionais é uma exigência da Constituição. A Emenda Constitucional 80/2014 determinou que isso fosse cumprido até junho de 2022, mas outra pesquisa feita pelas mesmas entidades, também no ano passado, mostrou que o Brasil ainda está longe desse objetivo.
Até junho de 2024, 40,9% das comarcas não eram atendidas por defensores estaduais e a Defensoria Pública da União não estava presente em 59,8% do total de subseções judiciárias. Das 28 Defensorias brasileiras, 15 ainda não eram capazes de atuar em toda a sua circunscrição geográfica.
A “Pesquisa sobre o sistema suplementar de advocacia dativa remunerada no Brasil” (de junho do último ano) e a “Pesquisa Nacional da Defensoria Pública” (de setembro) foram conduzidas em conjunto pelo Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege); pelo Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais (CNCG); e pela DPU, com apoio da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef). Todas as Defensorias estaduais tiveram alguma participação no trabalho.
Quando uma comarca não tem defensor público, o juiz pode nomear um advogado para prestar assistência a uma pessoa que não tenha condições de arcar com as custas do processo ou os honorários. O Estado fica responsável pelo pagamento desse advogado, chamado de dativo.
Diogo Esteves, defensor público do Rio de Janeiro e coordenador geral de ambas as pesquisas, explicou que os pesquisadores dividiram o valor gasto por cada estado com a advocacia dativa pelo custo de cada defensor público e distribuíram o resultado pelas comarcas vagas. Daí surgiu a conclusão de que seria possível cumprir o objetivo da EC 80/2014 (ainda que de forma tardia) somente com os valores hoje destinados à advocacia dativa, “sem gastar um centavo a mais do que já se gasta”.
Segundo Esteves, a opção pelo sistema de advocacia dativa no Brasil ocorre devido à “desorganização administrativa”. Como na maioria dos estados não há previsão do quanto se gasta com esses profissionais, as nomeações são feitas sob a falsa premissa de que estão resolvendo o problema.
Atualmente, 78,6% das unidades federativas ainda usam o sistema de advocacia dativa. Dentro dessa parcela, em 77,3% delas não é possível saber os valores gastos com advogados dativos — “por conta da falta de transparência e da ausência de controle administrativo”, de acordo com a primeira pesquisa.
Em SP, PR, SC, RS e RO, é possível identificar o gasto pelas respectivas lei orçamentárias ou pelo Portal da Transparência. Nos demais estados, os pagamentos aos advogados dativos saem diretamente da fonte geral de recursos do governo, chamada de fonte 00 — ou seja, são registrados em um código que também engloba diversas outras despesas.
Gastos detalhados
Em São Paulo, a lei orçamentária anual de 2023 reservou R$ 250,8 milhões para o sistema suplementar de advocacia dativa remunerada. Considerando o custo anual médio de um defensor público de nível 1 no estado, caso esses recursos fossem revertidos para a Defensoria, seria possível a contratação de 416 defensores públicos.
Isso representaria um aumento de 52,7% em relação ao quadro atual da Defensoria paulista. A partir desse aporte, o órgão conseguiria ampliar sua cobertura e prestar atendimento em todo o território estadual.
A nomeação dos novos defensores ainda geraria uma receita adicional de cerca de R$ 42 milhões para São Paulo, pois a arrecadação do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) referente a esses servidores pertence aos estados, e não à União.
No mesmo ano, o Paraná destinou R$ 124,2 milhões ao pagamento de honorários de advogados dativos. Com esse dinheiro, o governo estadual conseguiria mais do que triplicar seu quadro de defensores públicos e, consequentemente, atingir a cobertura territorial completa — poderia contratar 308 profissionais, um crescimento de 216,9%. A medida geraria uma receita adicional de R$ 20,8 milhões por causa da arrecadação do IRRF.
Em Santa Catarina, R$ 63,9 milhões foram destinados à advocacia dativa em 2023. O valor seria suficiente para contratar 168 defensores públicos, fazer o quadro atual crescer mais do que o dobro (141,2%) e cobrir todo o território do estado. A arrecadação do IRRF ainda garantiria uma receita adicional de R$ 8,9 milhões.
O Rio Grande do Sul gastou R$ 5,6 milhões com advocacia dativa em 2023. Já Rondônia gastou apenas R$ 514,2 mil. Esses gastos dizem respeito a situações excepcionais, como vacância temporária e nomeações indevidas de dativos quando havia defensor público disponível.
Ainda não há dados consolidados sobre 2024, mas informações preliminares coletadas pelos pesquisadores indicam que os gastos caíram de forma significativa. Em Rondônia, essa despesa foi praticamente zerada.
Mesmo com a cobertura territorial completa, a pesquisa concluiu que a reversão do orçamento da advocacia dativa para a Defensoria Pública “permitiria que a instituição avançasse” no cumprimento da EC 80/2014 e aproximaria esses dois estados da “promessa constitucional de proporcionalidade entre o número de defensores públicos e a efetiva demanda pelo serviço”.
De acordo com Esteves, Rondônia é um modelo a ser seguido. O estado fez um estudo próprio e constatou que o gasto com advocacia dativa era maior do que o necessário para colocar defensores em todas as comarcas.
Após uma reunião entre o governo estadual, o defensor público-geral, o presidente do Tribunal de Justiça, o presidente da seccional da OAB e o presidente do Tribunal de Contas do estado, ficou decidido, em 2021, que os valores seriam revertidos para a Defensoria. Além disso, os gastos remanescentes durante o período de transição (enquanto os concursos eram preparados) foram disponibilizados no Portal da Transparência.
Gasto inexplicável
Entre as unidades federativas que usam o sistema de dativos, metade possui tabelas de precificação específicas, que preveem quanto o advogado pode ganhar. Normalmente, os valores são baixos.
A outra metade paga os dativos com base na tabela da Ordem dos Advogados do Brasil, que garante valores maiores. Segundo Esteves, isso não acontece em nenhum outro lugar do planeta.
De acordo com a pesquisa, caso os serviços atualmente prestados por defensores públicos fossem desenvolvidos por advogados dativos, o custo anual seria de R$ 153,7 bilhões a mais do que o gasto com as Defensorias. Ou seja, o cenário atual gera um gasto muito maior para os governos.
Em 88,1% das unidades federativas que usam o sistema de dativos, não há qualquer limite de remuneração dos advogados. Assim, os pagamentos podem facilmente exceder o teto remuneratório previsto na Constituição, a depender do número de nomeações.
Franklyn Roger Alves Silva, defensor público do estado do Rio e doutor em Direito Processual, destaca que “o custo financeiro de um modelo pautado em remuneração por casos atendidos, em um país marcado pela litigiosidade de massa, é muito mais elevado do que o modelo de corpo assalariado, implantado através da Defensoria Pública”.
Além da falta de transparência na grande maioria dos estados, Esteves lembra que o sistema de advocacia dativa não tem previsão orçamentária. Todo ano é possível saber quanto cada estado gastará com a Defensoria. Já os advogados dativos são pagos conforme as nomeações são feitas.
Para ele, há um círculo vicioso. Os governos se veem sem dinheiro para pagar a Defensoria e suprem essa carência com advogados dativos, mas sem saber que o gasto é maior. A solução é simples: tirar a advocacia dativa do mercado e investir na Defensoria. Mas isso não é feito por falta de “força política” e de “organização administrativa”.
O coordenador da pesquisa ainda indica que o serviço dos advogados dativos é muito mais limitado do que o dos defensores. Estes últimos conseguem “fazer muito mais coisas”.
Defensora pública de Minas Gerais e doutora em Direito Público, Renata Martins de Souza explica que o advogado dativo está restrito aos atos no processo em que foi nomeado. Já o defensor público atua de maneira mais ampla e “mais benéfica ao cidadão vulnerabilizado”, pois seus serviços incluem a resolução de conflitos de forma extrajudicial.
Os defensores podem, por exemplo, enviar ofícios a um cartório de registro civil para obter certidões de casamento ou nascimento, sem acionar o Judiciário. Também podem promover educação em direitos e até atuar de forma estratégica perante o Legislativo e o Executivo para construir políticas públicas aos vulneráveis.
Outra possibilidade é ingressar com ações civis públicas — buscando garantir vagas em creches, leitos em hospitais, iluminação, banho de sol e água potável a pessoas presas etc. —, o que atende a milhares de pessoas de uma só vez e reduz a judicialização.
“A subversão do modelo constitucional de Defensoria por dativo, além de gerar prejuízo ao cidadão mais alijado, pode, ainda, onerar ainda mais o erário público”, afirma a defensora.
Maurilio Casas Maia — defensor público no Amazonas, doutor em Direito Constitucional e pós-doutor em Direito Processual — reforça que a atuação dos defensores “suplanta a esfera judiciária” e afirma que seu modo de nomeação e estruturação “diminui ataques à sua independência profissional”.
Embora reconheça o esforço dos advogados dativos, Maia diz que “é preciso afastar a precariedade profissional e abrir postos de concursos públicos na Defensoria Pública para os melhores profissionais dentre eles”. Afinal, o sistema de dativos é paliativo: só existe porque o poder público “não se organizou minimamente para estruturar razoavelmente a Defensoria”. Também não é o mais viável do ponto de vista econômico.
Para Jorge Bheron Rocha, professor e doutor em Direito Constitucional, a advocacia dativa “não deve ser vista como paralelo, nem substituto, para a Defensoria Pública”, pois é “incapaz de proporcionar uma atuação de defesa coletiva de direitos ou de direitos coletivos”.
Segundo ele, as demandas “pulverizadas e individuais” nas quais os dativos atuam podem “encarecer o acesso à Justiça e sobrecarregar o Judiciário”. Por isso, “a aposta deve ser na realização integral da determinação da Constituição de proporcionar acesso da população necessitada às Defensorias em todo o Brasil”.
Alves Silva acrescenta que o sistema de advogados dativos “não foi a opção constitucional para a assistência jurídica prestada pelo Estado”. Por isso, “precisa ser encarado como algo transitório, à medida em que a Defensoria Pública consolida a integralidade de seus serviços”.